Darel - 100 anos de um artista contemporâneo
O contemporâneo para Darel é o perene
Clarival do Prado Valladares
Darel Valença Lins foi um artista denso e inquieto. Nasceu em 1924, em Palmares, zona da mata pernambucana, e revelou tão cedo seu talento que, aos treze anos, começou a trabalhar como aprendiz de desenhista técnico na Usina Catende. Essa vivência, junto a um regime praticamente escravocrata, marcaria a vida do jovem desenhista, impregnando sua futura obra de uma dimensão trágica – que é sua força. Desde a adolescência, compreendeu que a arte era, para ele, um meio de expressão imperioso, e que essa compulsão por criar jamais o abandonaria.
Ainda muito jovem, mudou-se para o Recife, tornando-se funcionário do Departamento Nacional de Obras e Saneamento (DNOS). Perseguindo seu sonho, pediu uma transferência para o Rio de Janeiro, onde se estabeleceu em 1946. Dois anos depois,abandonou o emprego público para fazer o que queria – ser artista – e nunca mais parou...
Sempre na vanguarda de seu tempo, Darel fez desenho, gravura em metal, óleo, guache e pastel. Foi pioneiro no uso artístico da litografia, tornando-se o mais exímio litógrafo do Brasil, e criou linguagens inovadoras ao utilizar simultaneamente várias dessas técnicas. A partir dos anos 1980, passou a realizar fotomontagens, associando colagem, pastel, guache e desenho. Em meados dos anos 2000, produziu pinturas em grandes dimensões e também fez experiências com videoarte. Sua obra múltipla percorre todos esses caminhos intensamente, atravessando décadas com coerência e reinvenção.
No início da década de 1940, ainda no Recife, paralelamente ao seu trabalho, Darel frequentou a Escola de Belas Artes da cidade. O ensino, nos moldes da Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro, era acadêmico e rígido, e o desagradou: “A desenhar os torsos gregos e efígies romanas que nos obrigavam a traçar durante as aulas, eu preferia reproduzir as fotos de Greta Garbo ou Robert Taylor que via nas revistas. Isto foi o suficiente para que eu fosse expulso da escola, com poucos meses de frequência". Somente na década seguinte os movimentos de renovação artística aconteceriam em Pernambuco, com a criação da SAMR (Sociedade de Arte Moderna do Recife) (1952) e do Atelier Coletivo (1954), mas, desde 1946, Darel já estava longe...
No Rio, ele continuou a trabalhar no DNOS, mas, em carta para seu pai, datada de 22 de dezembro de 1949, Darel mostra sua determinação: “Sobre o ‘DNOS’ o senhor deve se convencer que ‘ele’ é para mim uma ‘Bolsa de Estudos’. Eu pretendo ser pintor e não funcionário público. Eu entendo o Senhor…Mas, se me preocupar em me solidificar no “Funcionalismo” esquecerei o que realmente quero. Além de tudo, devemos confiar nos nossos desígnios. O que eu preciso é saber ganhar ou aceitar a perda.”
Segundo contava Darel, um dia ele saiu do DNOS para um lanche e nunca mais voltou...mas, em vez de procurar a ENBA, foi para o Liceu de Artes e Ofícios, onde estudou gravura em metal com Henrique Oswald. A técnica foi uma descoberta, e seu progresso tão imediato que, em 1949, ele fez uma exposição individual na Biblioteca Nacional que já chamou a atenção da crítica. Vale conhecer um trecho do texto de Aníbal Machado sobre a obra do iniciante Darel, pois algumas das características que ele aponta, como a força trágica, a crispação da linha, o mistério e o lirismo, permanecerão para sempre, tornando-se marcas do artista:
(...) O traço largo do desenhista e o corte vigoroso do gravador configuram estruturas maciças de objetos que, pelos valores do claro-escuro, adquirem na sombra uma vida de mistério e uma surda irradiação. As figuras, quase sempre alongadas, assumem uma força trágica em consonância com a paisagem de que não se isolam e com a qual, ao contrário, estabelecem correspondências que reforçam o poder expressivo tanto de uma quanto de outras. Já na visão de algumas casas, um toque de lirismo vem atenuar a crispação das linhas e a espessura das sombras: a claridade abre-se nos espaços brancos e uma luz de poesia banha as fachadas que o arvoredo anima...
Em 1950, Darel conhece Oswaldo Goeldi e eles se tornam amigos. A técnica da xilogravura não interessa ao artista, mas o mestre se torna seu conselheiro. Através dele, Darel conhece o expressionismo alemão, especialmente a obra de Alfred Kubin, o que é um grande impacto para alguém fascinado por Dostoiévski.
Já frequentando o circuito de arte, Darel participa dos salões, realiza exposições e recebe prêmios com gravuras em metal e desenhos e, em 1951, inicia-se na litografia com profissionais da extinta Estamparia Colombo, gráfica de propriedade de Raymundo Castro Maya, no Rio de Janeiro. A partir daí, a técnica não seria um fim, mas um caminho repleto de possibilidades que o artista explorou como nenhum outro.
Em 1953, Darel torna-se o diretor-técnico da Gráfica de Arte S.A., responsável pelas edições dos Cem Bibliófilos do Brasil. Dedica-se também à atividade de ilustrador de jornais como Última Hora, Diário de Notícias, Flan, entre outros, e de revistas como Manchete e Revista da Semana. Mesmo com o trabalho intenso realizou, pela primeira vez no país, um curso de litografia artística na Escola Nacional de Belas Artes no Rio de Janeiro, em 1955.
Ainda ecoando a influência de Goeldi, Darel ilustra a obra Círculo de Giz, do escritor e dramaturgo Leo Vitor. Em dez contos baseados em fatos verídicos, o autor, que esteve internado em um sanatório de Petrópolis, aborda a enfermidade e a luta pela recuperação da saúde, num clima dostoievskiano. Ele e Darel se tornaram amigos e se reuniram para publicar, em 1956, o álbum de mesmo nome, com dez litografias do artista, numa tiragem de 110 exemplares. Nesse trabalho, Darel adotou uma abordagem expressionista, recriando a atmosfera de opressão e alucinação de cada um dos contos.
Em 1957, o artista realiza um de seus maiores objetivos ao receber, com a litografia Um ciclista, o cobiçado Prêmio de Viagem ao Exterior do Salão Nacional. Um fato raro, visto que a maior premiação desse certame era majoritariamente concedida à pintura.
Com o prêmio de viagem, Darel viveu por dois anos na Europa, mas esse contato revelou-se angustiante, e a vontade de voltar, uma constante. Com a experiência, ele percebeu que todas as cidades se equivalem na confusão do traçado urbano e no labirinto de informações – um excesso que gera, paradoxalmente, angústia e uma profunda sensação de solidão. Na volta ao Brasil, criou as Cidades Inventadas, um tema recorrente, que ele desenvolveria em gravura, litografia e pintura. Sobre essa produção, disse Mario Pedrosa: “A linha não é nele para ser lida, mas para invocar, evocar uma visão interior, que está por trás das aparências. Eis aí uma bela função do seu desenho, que, apesar de estruturado e construtivo, nos convida a penetrar as aparências em busca do cerne das coisas. No Brasil de desenhistas superficiais ilustrativos ou de vaguidades abstratas ou inanes, a lição do desenho substancioso de Darel é preciosa”.
Na sequência do seu mergulho na vida urbana, Darel lança um olhar para a pluralidade de elementos plásticos presentes em recantos escondidos e monumentos símbolos. Ele representa essa multiplicidade em aquarelas, pinturas e desenhos, sempre realizados com traços incisivos, que criam limitados campos de cor.
Em texto sobre a exposição realizada em 1965, na Galeria Seta, em São Paulo, diz Pedro Gismondi: Operando como sempre um profundo entrosamento entre linguagem e técnica, vemos surgir os pequenos campos cromáticos como consequência direta das aguadas. Uma série de colorações diferentes, sobrepostas e entrecruzadas, por meio das transparências e veladuras, cria campos menores, limitados às sobreposições e diferenciados por uma sutil e vasta gama de cores.(...) Geral e particular são os dois extremos sempre presentes na obra de Darel. É a eles que devemos o mistério sedutor da tensão dramática, intimamente inerente à linguagem dareliana.
Entre 1967 e 1973, Darel mergulha num universo simbólico que espelha a Guerra Fria. A tensão entre Estados Unidos e União Soviética, o fantasma do holocausto nuclear e a corrida espacial permeiam sua produção, na qual anjos e engrenagens surgem como figuras ambíguas: ora salvadoras, ora ameaçadoras. Nelas, Darel capta a perplexidade de um mundo dividido entre o progresso e o apocalipse, ecoando também os gritos das ruas de 1968. Espelho de um tempo em efervescência, sua obra foi assim comentada por Clarice Lispector:
Beleza e pesadelo marcam a obra de Darel. O choque impotente do indivíduo diante da máquina. As cidades escuras onde uma ou outra janela de luz acesa atesta que elas são habitadas. Psicanalisado ou não, trata-se de um grande artista e tenho que falar no resplandecente mistério de sua obra. Dela emana, tanto da gravura, quanto do óleo e do desenho, o grande mistério de viver.
Na segunda metade dos anos 1970, Darel atravessou uma crise criativa que o impulsionou a novos caminhos. Aproximou-se de um grupo de jovens semimarginais da Baixada Fluminense e se deixou fascinar por sua realidade intensa. A partir desse convívio, surgiu uma nova fase, centrada na figura humana. Seus desenhos tornaram-se livres, vibrantes, cheios de cor e movimento, oscilando entre o traço nervoso que captura o instante, e momentos densos, quase dramáticos, que revelam, com lirismo e verdade, a fragilidade desses jovens. Nas palavras de Olívio Tavares de Araújo: “Ele não procura fazer crônica de costumes e menos ainda estabelecer juízos moralistas sobre o que observa a seu redor. Pode-se até dizer, pelo contrário, que contempla esses universos, que não são os seus, com simpatia, no sentido mais grego da palavra: sente prazer junto com suas personagens. Seu objetivo maior é fazer bom desenho – e o faz”.
Mas seria nos anos 1980 que Darel se reinventaria mais radicalmente, mergulhando na figura humana — sobretudo a feminina. Vitor Hugo Gorino analisa essa guinada em sua dissertação de mestrado: “Trata-se de um homem lúcido e realista, liberto de preconceitos morais ou artísticos... recria esse mundo num universo seu, erótico, lírico e por vezes subversivo”.
As mulheres de Darel são mistério e desejo, beleza e dor. Prostitutas, figuras do submundo urbano, heroínas anônimas cujos corpos se impõem pela poesia do traço. Em ambientes velados, entre lençóis e penumbras, essas figuras ganham contorno e alma. Não há desconsideração nem idealização: há respeito. São mulheres reais, plenas de sensualidade, mas cujos gestos eróticos se revestem muitas vezes de nostalgia e cansaço. Na análise de Frederico Morais:
Darel visita as mulheres no seu território, o espaço estreito de um quarto, sobre a cama, entre almofadas, espelhos e gatos. Olha tudo atentamente, o vestir, o desvestir, os objetos que compõem e definem o espaço, os gestos e rituais que se repetem lânguidos, preguiçosos. Ao mesmo tempo estimula todas as fantasias do modelo, que se mascara ou se veste apenas com um largo cinto de couro. Há uma indisfarçável atmosfera erótica. Como ele me confessa: "No final da vida, Cézanne pintava maçãs. Morandi amava as garrafas, hoje, pinto belas mulheres, belas bundas".
A partir daí, adentrando os anos 1990, seu trabalho experimenta a fusão entre o artesanal e o tecnológico. Darel incorpora imagens de revistas e jornais às suas composições — não como citações banais, mas como elementos ressignificados por sua linguagem. Muito mais do que um recurso de ilustração, elas se transformam em etapa essencial de seu processo criativo. Ao reunir imagens de revistas, fotografias autorais e gravuras diversas, Darel cria composições híbridas sobre as quais desenha, projeta slides ou associa a outras técnicas. Nessas obras, a fotografia deixa de ser apenas registro e passa a ser matéria poética — meio e metáfora. Algumas dessas colagens deram origem a litografias, outras permaneceram únicas, mas todas revelam a ebulição criativa de um artista em plena liberdade formal. Essa reinvenção constante o coloca no patamar dos grandes artistas modernos, que entendiam o fazer artístico como um processo de descoberta contínua.
Nesse ponto, seu trabalho toca uma dimensão ainda pouco explorada pela crítica: a da memória cultural compartilhada. Como aponta Vitor Hugo Gorino: “suas litografias reajustam e recompõem imagens apropriadas, gerando uma nova construção... semelhante ao que fazem os processos cognitivos da memória”. Darel transforma a banalidade da imagem editorial em poética visual, como quem devolve à imagem sua carga simbólica e humana.”
Em paralelo à sua produção mais experimental, Darel jamais deixou de dialogar com os fundamentos clássicos da gravura. Professor por vocação e paixão, ensinou no MASP, na Escola Nacional de Belas Artes e na FAAP, influenciando gerações de gravadores. Sua atuação como diretor técnico da Sociedade dos Cem Bibliófilos do Brasil também foi decisiva para a qualificação editorial no país, ilustrando volumes com o mesmo cuidado com que criava suas obras autorais.
Nos anos 2000, Darel surpreendeu novamente ao voltar-se à pintura em grande escala. Flores imensas, carregadas de cor e sensualidade, brotam em sua fase final como uma espécie de epílogo visual. São trabalhos em que o gesto ganha liberdade e a cor explode sobre o suporte com a vitalidade de quem nunca deixou de buscar o novo.
Em 2005, fiz uma longa entrevista com Darel, que resumiu sua trajetória com uma citação poética: “Um pássaro não canta para ouvir uma resposta, ele canta porque tem uma canção”. Essa frase define a essência de sua criação. Fazer arte não é buscar a aprovação do mercado, dos colecionadores ou dos curadores, mas compartilhar o que pulsa, o que arde, o que floresce dentro do artista.
A trajetória de Darel Valença Lins é marcada por encontros decisivos com artistas que, como ele, moldaram a paisagem da arte brasileira. Conviveu com nomes como Goeldi, Lívio Abramo, João Cabral de Melo Neto, Iberê Camargo, Portinari, Di Cavalcanti, Mário Cravo Jr., Djanira e, na Europa, Morandi – este último talvez o que mais tenha reverberado em sua busca pela essência na simplicidade.
Sua obra foi objeto de atenção de grandes críticos e escritores. Clarice Lispector, Vinicius de Moraes, Olívio Tavares de Araújo, Mário Pedrosa, Frederico Morais, Casimiro Xavier de Mendonça, entre outros, escreveram sobre ele com admiração e respeito. Suas palavras são testemunhos da força estética e ética de um artista que se manteve íntegro frente aos modismos e ao mercado.
Num cenário em que a gravura é, muitas vezes, relegada à condição de “arte menor” – preconceito gerado não por sua qualidade, mas pelas distorções do mercado – Darel ergue-se como símbolo de uma arte acessível, democrática e profundamente sofisticada. Como observa o próprio artista: “A proposta dos gravadores era exatamente essa: criar uma arte para todos, reprodutível e, por isso, acessível”. Darel faleceu no Rio de Janeiro, em 2017 e, até os últimos anos de vida, manteve-se lúcido, ativo e apaixonadamente criativo – deixando um potente legado para a arte brasileira no século XX.
E é isso que a exposição Darel – 100 anos de um artista contemporâneo deseja resgatar: não apenas a memória de um criador extraordinário, mas também o valor de uma linguagem que foi central para o desenvolvimento das artes visuais no Brasil. Ao reunir 95 obras que atravessam as diferentes fases de sua produção, a mostra oferece ao público a chance rara de percorrer, em conjunto, os caminhos trilhados por esse mestre da imagem e do traço.
Darel desenhou o mundo como quem escreve poesia. Seu traço crispado é sempre lírico. Sua arte não se impõe — insinua-se. Está no campo das obras que permanecem porque têm verdade interior.
Com esta mostra, convidamos o público a descobrir — ou redescobrir — um artista que não cantava para ser ouvido, mas porque tinha uma canção. E sua canção, feita de sombras e luz, de mulheres e cidades, de flores e colagens, ecoa como um canto firme e doce, gravado na história da arte brasileira.
Denise Mattar
Curadora